sábado, 26 de junho de 2010

Cinzento tóxico

Estaco.
O verde fresco e pesado que deixei à pressa já não é o mesmo; é cinzento tóxico. Aquele pequeno rectângulo que outrora conhecia tão bem, hoje é trapézio irregular. Tudo disforme de uma irregularidade que nunca conheci.
Estaco e continuo imóvel.
Invadem-me a memória os instantes que em que tudo começou, o momento em que fui obrigado a abandonar a minha vida sem sequer poder olhar para trás. Estava sentado à mesa, era hora de jantar quando a primeira bomba caiu. Arrancaram-me a infância à força. Caiu mais uma, também eu caí. E mais uma bomba, caiu o mundo a meus pés. Aprendi com o tempo que as lembranças têm sons e cheiros e são eternas na medida em que se podem repetir infinitamente durante uma vida que por mais contraditória que seja, é finita. De um momento para o outro choviam bombas que rebentavam em explosões qual trovões e trovoadas de uma chuva equatorial. Seguiram-se os disparos, rajadas de metralhadoras, tropas a invadir a vila, frotas de tanques, lances de granadas, gritos, tiros, gemidos, silvos, berros, o marchar ordenado do exército, a recepção sumptuosa da morte.
E por mais que queira não consigo apaga-las. Como disse, as memórias são eternas, e as minhas para além de visualiza-las e senti-las também as posso provar; são ácidas.
A terra que encontro não é a mesma que deixei, hoje é habitada por sombras de entes já não existentes, é cidade fantasma, vulto do passado, ranhura no espectro temporal.
Oh tomara atravessá-la e trazer para o presente o passado inexistente. Tomara regressar à inocência da infância, ao carinho do colo de minha mãe, às brincadeiras de mocidade, tomara reviver do princípio ao fim ou do fim ao princípio como nos possibilita a dita palavra, todos os amores da minha juventude que coloriam a minha vida, a minha vila.
Mas agora ela é cinzenta-tóxica tal como a minha vida.
Hoje não sou verde esperança, sou cinzento imundo. A estrada terminou, faço a viagem de regresso assim como o salmão regressa à casa quando vê a vida escapar-lhe. Mas nem o regresso me torna mais verde, continuo intoxicado.
Dirijo-me ao repouso eterno de meus pais. Ali estão sob a frieza das lápides e a aspereza de outras tantas flores já murchas. A vida dá-nos tantas oportunidades de sermos felizes, mas na ilusão de vivermos uma vida eterna colorimos a nossa vida de tóxico e envenenamo-nos de cinzento. Preciso de ti mãe.
Como sempre, tens um lugar junto do teu leito. Cavo a minha campa, deito-me.

Purifico-me de verde com o tempo e eternamente, estaco.

4 comentários:

  1. Bem... muito bom, tem história real, cenários conhecidos e bem reais, uma historia que reflecte sobre o inocente que perde outros inocentes numa vila inocente, em que tudo e destruído... restam memórias... memórias... é talvez das coisas que nos distingue das outras espécies, a par da cultura, mas a memória é fantástica como conseguimos guardar pedaços de vida com tanto pormenor coisas de segundos por vezes.
    Parabéns com alma e sentimento, mt bom texto!

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  2. bem, senti-me transportado sabe-se la para onde qaundo li.
    As memórias sempre me fascinaram por serem algo tão complexo. as vezes tenho memorias desencadeadas por situaçoes ou cheiros que nem sabia que as tinha ainda...
    está muito bom, senti-o muito muito pessoal mesmo

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  3. Demorei tanto tempo para ter um comentário estruturado! Mas aqui vai : acho que compreendi a mensagem do texto e adorei, sobretudo a imagem criada intelectualmente no leitor. As palavras foram muito bem escolhidas (o que é raro) e como consequência ilustraram na perfeição a trajectória física e memorial da personagem. Bravo! :D*

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  4. Está fantástico este texto! Desperta-nos inúmeros sentimentos, como se estivéssemos na pele da "personagem principal".
    Estás de parabéns porque isto está muito bom mesmo!

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