quarta-feira, 30 de junho de 2010

O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Éolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Águas franze Neptuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?

Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?

Ricardo Reis

sábado, 26 de junho de 2010

Cinzento tóxico

Estaco.
O verde fresco e pesado que deixei à pressa já não é o mesmo; é cinzento tóxico. Aquele pequeno rectângulo que outrora conhecia tão bem, hoje é trapézio irregular. Tudo disforme de uma irregularidade que nunca conheci.
Estaco e continuo imóvel.
Invadem-me a memória os instantes que em que tudo começou, o momento em que fui obrigado a abandonar a minha vida sem sequer poder olhar para trás. Estava sentado à mesa, era hora de jantar quando a primeira bomba caiu. Arrancaram-me a infância à força. Caiu mais uma, também eu caí. E mais uma bomba, caiu o mundo a meus pés. Aprendi com o tempo que as lembranças têm sons e cheiros e são eternas na medida em que se podem repetir infinitamente durante uma vida que por mais contraditória que seja, é finita. De um momento para o outro choviam bombas que rebentavam em explosões qual trovões e trovoadas de uma chuva equatorial. Seguiram-se os disparos, rajadas de metralhadoras, tropas a invadir a vila, frotas de tanques, lances de granadas, gritos, tiros, gemidos, silvos, berros, o marchar ordenado do exército, a recepção sumptuosa da morte.
E por mais que queira não consigo apaga-las. Como disse, as memórias são eternas, e as minhas para além de visualiza-las e senti-las também as posso provar; são ácidas.
A terra que encontro não é a mesma que deixei, hoje é habitada por sombras de entes já não existentes, é cidade fantasma, vulto do passado, ranhura no espectro temporal.
Oh tomara atravessá-la e trazer para o presente o passado inexistente. Tomara regressar à inocência da infância, ao carinho do colo de minha mãe, às brincadeiras de mocidade, tomara reviver do princípio ao fim ou do fim ao princípio como nos possibilita a dita palavra, todos os amores da minha juventude que coloriam a minha vida, a minha vila.
Mas agora ela é cinzenta-tóxica tal como a minha vida.
Hoje não sou verde esperança, sou cinzento imundo. A estrada terminou, faço a viagem de regresso assim como o salmão regressa à casa quando vê a vida escapar-lhe. Mas nem o regresso me torna mais verde, continuo intoxicado.
Dirijo-me ao repouso eterno de meus pais. Ali estão sob a frieza das lápides e a aspereza de outras tantas flores já murchas. A vida dá-nos tantas oportunidades de sermos felizes, mas na ilusão de vivermos uma vida eterna colorimos a nossa vida de tóxico e envenenamo-nos de cinzento. Preciso de ti mãe.
Como sempre, tens um lugar junto do teu leito. Cavo a minha campa, deito-me.

Purifico-me de verde com o tempo e eternamente, estaco.