Estaco.
O verde fresco e pesado que deixei à pressa já não é o mesmo; é cinzento tóxico. Aquele pequeno rectângulo que outrora conhecia tão bem, hoje é trapézio irregular. Tudo disforme de uma irregularidade que nunca conheci.
Estaco e continuo imóvel.
Invadem-me a memória os instantes que em que tudo começou, o momento em que fui obrigado a abandonar a minha vida sem sequer poder olhar para trás. Estava sentado à mesa, era hora de jantar quando a primeira bomba caiu. Arrancaram-me a infância à força. Caiu mais uma, também eu caí. E mais uma bomba, caiu o mundo a meus pés. Aprendi com o tempo que as lembranças têm sons e cheiros e são eternas na medida em que se podem repetir infinitamente durante uma vida que por mais contraditória que seja, é finita. De um momento para o outro choviam bombas que rebentavam em explosões qual trovões e trovoadas de uma chuva equatorial. Seguiram-se os disparos, rajadas de metralhadoras, tropas a invadir a vila, frotas de tanques, lances de granadas, gritos, tiros, gemidos, silvos, berros, o marchar ordenado do exército, a recepção sumptuosa da morte.
E por mais que queira não consigo apaga-las. Como disse, as memórias são eternas, e as minhas para além de visualiza-las e senti-las também as posso provar; são ácidas.
A terra que encontro não é a mesma que deixei, hoje é habitada por sombras de entes já não existentes, é cidade fantasma, vulto do passado, ranhura no espectro temporal.
Oh tomara atravessá-la e trazer para o presente o passado inexistente. Tomara regressar à inocência da infância, ao carinho do colo de minha mãe, às brincadeiras de mocidade, tomara reviver do princípio ao fim ou do fim ao princípio como nos possibilita a dita palavra, todos os amores da minha juventude que coloriam a minha vida, a minha vila.
Mas agora ela é cinzenta-tóxica tal como a minha vida.
Hoje não sou verde esperança, sou cinzento imundo. A estrada terminou, faço a viagem de regresso assim como o salmão regressa à casa quando vê a vida escapar-lhe. Mas nem o regresso me torna mais verde, continuo intoxicado.
Dirijo-me ao repouso eterno de meus pais. Ali estão sob a frieza das lápides e a aspereza de outras tantas flores já murchas. A vida dá-nos tantas oportunidades de sermos felizes, mas na ilusão de vivermos uma vida eterna colorimos a nossa vida de tóxico e envenenamo-nos de cinzento. Preciso de ti mãe.
Como sempre, tens um lugar junto do teu leito. Cavo a minha campa, deito-me.
Purifico-me de verde com o tempo e eternamente, estaco.